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FÉ, SENTIMENTO E RAZÃO

Quem tem ou deveria ter primazia no governo do eu? Quem é senhor e quem é servo na tríplice estrutura do eu que rege o ser humano? Ou será melhor não pensar hierarquicamente e sim, circularmente, quando está em questão a fé, os sentimentos e a razão? Essa é uma daquelas questões permanentemente debatidas e com solução final sempre adiada. Afinal, há boas razões para qualquer uma das quatro posições possíveis, a saber a) que a fé tem primazia; b) que os sentimentos têm primazia; c) que a razão tem primazia; d) que nenhuma deve ter a primazia.

“A fé é a mais elevada paixão de todos os homens (Kierkegaard). Estou aqui pensando na fé religiosa e teológica, e não da fé antropológica que cada humano deposita no outro humano, sem a qual a vida seria impossível, pelas paranoias que se instalariam, cada um fazendo do outro um inimigo oculto. Do ponto de vista teológico e religiosa a fé é aquela confiança e entrega depositada em um ser superior, transcendente que nomeamos Deus. Para alguns, sem Deus a vida não valeria a pena, pois completamente sem sentido. E mais. Sem fé em Deus, a consequências na conduta moral da vida seria fatal, pois como diz Dostoievski, se “Deus não existisse, tudo seria permitido”, dando entender que já não saberíamos o que é certo e o que é errado. Assim pensam muitos. Essa postura engendra o melhor e o seu contrário, pois a corrupção do melhor engendra o pior, como é o caso dos fanáticos que são capazes de matar em nome de Deus. Outros pensam que os sentimentos (amor, ódio, ressentimento, indignação etc) é o que há de mais forte e é o que comanda efetivamente a nossa existência. Quem já não ouviu dizer: “vai onde teu coração mandar”, dando entender que os sentimentos, e não a fé e nem a razão, são os guias confiáveis do sentido da vida e da boa conduta moral, inclusive. Hoje essa esfera da constituição do eu está em alta. Depois de um longo percurso de repressão ao corpo e aos sentimentos, processados tanto pelas religiões quanto pelos filósofos da modernidade, finalmente há uma verdadeira ressurreição dos sentimentos como guia da vida. Poderíamos pensar aqui com Schopenhauer e Freud. Schopenhauer dizia que a cabeça é apenas uma anã colocada sobre as costas de um gigante, os sentimentos (vontade). Ele diz mais. Diz que a vontade, outro nome para os sentimentos, primeiro decide e depois aluga a razão para dar boas justificativas pela sua decisão prévia. Sabia de tudo esse Schopenhauer! Freud, por sua vez, foi enfático ao dizer que a mente é apenas uma onda superficial, num mar agitado e profundo dos sentimentos inconscientes. Em última instância, quem estaria no comando são os sentimentos e não a razão ou a fé. Já não ouvimos dizer frases do tipo: ama e faz o que quiseres? Pois é, como se alguém que amasse não pudesse fazer o mal...

Os racionalistas por sua conta, apostam tudo na razão. “O homem é um animal racional”, dizia Aristóteles e a parte, metaforicamente falando, que deve governar o humano é a cabeça e não o peito ou o ventre, dizia Platão, antes mesmo de Aristóteles. Em Platão isso acaba virando política, dizendo que quem deve governar a sociedade são os filósofos, pois eles entendem das coisas e não tem nenhum interesse senão a justiça. Modernamente, Descarte e Kant vão na mesma direção. A razão seria a garantia de agimos livres e não por natureza instintiva sempre propensa ao egoísmo. Só a razão é o guia seguro da universalidade imparcial e moralmente boa, condutora da vontade e dos sentimentos que são sempre parciais, provisórios e seletivos.

E agora? A quem cabe a palma? A quem devemos nos curvar? A fé, os sentimentos ou a razão? Vai onde a fé te conduzir, ou vai onde o coração e a razão te guiar? Ou será que não seria um falso dilema pensar na forma disjuntiva ou/ou? Será que a vida não comporta uma complexidade de forças que interagem, ora prevalecendo uma força ora outra? Se cegamente nos deixássemos conduzir pelo coração, não tenderíamos ao precipício? Mas a razão sem o coração não seria fria e calculista demais? E sem a fé, que sentido e que direção a vida teria? “O círculo é a festa do pensamento”, dizia Heidegger. Eu circulo, tu circulas, ele circula...

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